Cadê a veneziana?

Existem alguns detalhes que muitas vezes se tornam rotina no nosso dia-a-dia e podem passar desapercebidos ao estarmos em outros país, mas com certeza não por muito tempo. Lá está você dormindo tranqüilamente. Eis que então vem aquela luz matreira bem direto na sua face. Isso claro quando a respectiva luz não dá lugar aos raios solares. Você acorda então com aquele ar de “Onde estou?” e imediatamente enfia a cabeça embaixo do travesseiro em busca daquele escurinho precioso. Tudo em vão. Quando a sonolência já deu lugar à sã consciência, vem aquela pergunta que não quer calar: “Cadê a veneziana?”. Essa cena aconteceu por diversas vezes durante minhas estadas na Alemanha. Um terror para quem tem síndrome de morcego e adora dormir em total penumbra, como é meu caso. J

Janelas com folhas venezianas assim como temos no Brasil são praticamente inexistentes na Alemanha. As janelas possuem geralmente uma única folha com vidros duplos. O ar confinado entre os vidros propicia o conforto término necessário nos dias de frio rigoroso. A forma como elas abrem é igualmente interessante. O trinco possui duas posições de abertura, uma em que a folha abre totalmente e outra em que a folha funciona como basculante - ou como os alemães a denominam: "auf Kipp" -, resultando em uma abertura apenas superior. Esse tipo de janela impera nas residências modernas no norte da Alemanha. No sul este tipo é igualmente freqüente, mas também é possível encontrar, principalmente nas regiões montanhosas, janelas de abrir com duas folhas como as do Brasil. Estas são entretanto de madeira lisa com diferentes decorações. Nada de venezianas. Mas com certeza estas sim propiciam aquele escurinho sagrado para um sono confortável. J

Um turista talvez possa não perceber este detalhe, especialmente porque nos hotéis existem normalmente duas linhas de cortinas, uma de tecido grosso, outra de material sintético.

Sem dúvida o hábito de dormir com claridade provavelmente varia de família para família alemã. Obviamente se houver na janela qualquer tipo de proteção bloqueando a entrada de luz, o ambiente automaticamente ficará mais escuro. No entanto, nunca é igual à escuridão proporcionada pela janela veneziana. O Thomas, adepto da janela sem qualquer proteção contra claridade, sentiu na hora o impacto da escuridão gerada pela veneziana. Ele me contou que sentiu dificuldades para dormir num ambiente para ele tão escuro ou, como ele mesmo diz, “Não estou acostumado a dormir com escuridão tal que eu não possa distinguir as formas dos objetos”. Pois é, tivemos então que entrar num acordo. Quando estamos na Alemanha, todas as persianas abaixadas, quando estamos no Brasil, veneziana aberta. J

O Thomas me contou também que existe a possibilidade de comprar um tipo de persiana de enrolar (ou também chamada de rolô) para fixar na janela. Geralmente de metal, esta pode até mesmo possuir acionamento mecânico. Em São Paulo é possível ver muitos prédios com algo semelhante, que eu definiria como um tipo de veneziana de enrolar. Dessa forma, esse sistema também seria uma possível alternativa para trazer maior escuridão ao ambiente.

Falando sobre janelas e já relacionando o assunto com a arquitetura das residências, é muito interessante observar como as construções vão se alterando na paisagem de país para país. É algo extraordinário para um turista que está viajando de trem. Não existem fronteiras físicas que justifiquem uma alteração brusca na arquitetura, mas mesmo assim elas estão intensamente presentes. O mais lógico seria uma modificação gradual, primeiramente um estilo predominante, passando por uma mistura de estilos até chegarmos a outro estilo predominante. Mas muitas vezes não é o que ocorre. Logo que passamos pela fronteira da França, já sentimos a diferença existente na arquitetura. Ali já começavam a surgir por toda parte as nossas queridas janelas venezianas (ou Persienne para os franceses). J

Para quem tiver interesse em se aprofundar mais no assunto, coloco um texto bastante interessante mostrando as origens da denominação "veneziana" no Brasil.

Dois dispositivos móveis de proteção contra o sol bastante usuais na arquitetura brasileira:
a veneziana e a persiana.


A Idéia dos "Filtros Arquitetônicos"

A exemplo do brise-soleil, muitos outros componentes usuais da arquitetura ocidental contemporânea nasceram da adaptação de práticas tradicionais da arte construtiva mediterrânea. Essa região, considerada berço da Civilização Ocidental, foi também durante séculos o centro privilegiado dos contatos e das trocas entre povos e conhecimentos. Ali se mesclaram informações e experiências orientais, européias e africanas, o que torna difícil atribuir com precisão a um povo ou a uma região a primazia pelo desenvolvimento desta ou daquela invenção construtiva.

Diversos países do Oriente Médio e da Ásia, cujas culturas são marcadas por sistemas complexos de demarcação dos territórios domésticos (o espaço dos homens, das mulheres, da família, dos servos, da oração, etc), desenvolveram na construção de seus edifícios variados tipos de vedações interiores e exteriores, procurando dar conta das inúmeras nuances dessas interdições. Interdição do acesso, do olhar, da luz e da paisagem exteriores; interdição permanente ou negociável; conter sem enclausurar, delimitar sem colocar obstáculo físico.

Treliças e ripados de madeira além de elementos cerâmicos vazados tratados com finalidade decorativa foram os mais usados nos países com forte influência árabe; esteiras, tecidos, toldos e beirais foram mais freqüentes nos países de ascendência oriental evidente. Eis alguns dos materiais e formas que compõem o acervo de filtros arquitetônicos disponíveis desde o século XV ou XVI na grande região mediterrânea.

Sociológica e simbolicamente justificado, esse recurso às vedações ligeiras e transparentes, se adequa também à necessidade local de limitar o excesso de sol e calor sem impedir a iluminação e a ventilação adequada dos ambientes. Privacidade e conforto ambiental tornam-se assim dois objetivos inseparáveis dos filtros arquitetônicos.

PÉRSIA / VENEZA
as Viagens de certas palavras e conceitos

Pode-se afirmar que a concepção ocidental da persiana está ligada às origens mais remotas da arquitetura moderna, desde que se concorde com Emil Kaufmann e Joseph Rykwert que situam essas origens na nova racionalidade e universalismo surgidos no século XVIII (iluminismo francês).

É que o vocábulo persiana, tanto em português quanto em italiano, deriva da expressão francesa persienne, substantivo cunhado no século XVIII (1732) para designar um novo tipo de proteção externa de janela. O termo exprime as observações feitas nos países mesopotâmicos por viajantes e arquitetos precursores da nova tendência iluminista. Em italiano, como em português, persiana constitui, portanto, um galicismo.

Já o vocábulo veneziana, em português, além de qualificar as coisas e pessoas de Veneza, é a tradução literal do mesmo vocábulo italiano que designa um tipo de resguardo interno de janela, outrora muito utilizado nas residências de Veneza. A palavra não existe em francês, com esse significado.

A reconstituição dos caminhos percorridos pelas duas palavras e pelos conceitos que lhes corresponderam, desde o Oriente Médio até os dias de hoje, revela fatos curiosos e interessantes sobre o passado desses componentes arquitetônicos tão corriqueiros.

No século XVIII, num momento em que as artes e a ciência européias se abrem para o conhecimento de outras culturas e regiões do mundo (ciclo das grandes viagens e das expedições científicas), difunde-se na França um novo tipo de resguardo externo para as janelas dos edifícios, inspirado em um modelo muito difundido na Pérsia. Era fabricado com lâminas estreitas e paralelas de madeira, dispostas horizontalmente dentro de caixilhos também de madeira, inclinadas para baixo e distanciadas entre si. Essas tabuinhas substituem as folhas lisas ou almofadas de madeira maciça, anteriormente utilizadas. O dispositivo de abertura que os franceses utilizam é o tradicional, com duas folhas articuladas verticalmente às ombreiras e rebatendo para fora sobre as paredes laterais.

Na época, o que se batizou de persiana, foi o sistema das réguas de madeira inclinadas e espaçadas, independente do tipo de janela em que fosse aplicado. Esse sistema permitia a ventilação dos ambientes mesmo quando as janelas estavam fechadas, ao mesmo tempo em que protegiam o interior dos cômodos da chuva e da incidência dos raios solares. Nos demais países do Oriente Médio e do norte da África o tipo de anteparo mais difundido, nessa função de "filtro" da luz e dos olhares, foi a gelosia. Consistia de uma grade ou treliça de réguas de madeira cruzadas, usada como painel fixo ou móvel, em janelas rótula ou balcões muxarabi.

Mas o sistema das tabuinhas paralelas não era específico da Pérsia, apesar de ser ali muito difundido. Já os árabes que ocuparam a península ibérica conheciam um sistema semelhante chamado de ad-daffá ou adafa, traduzido para o português como adula. Esse sistema utilizava réguas de madeira mais largas, fixas ou reguláveis, servindo sobretudo como proteção contra o vento e a chuva. Era usado desde a Idade Média para a proteção dos campanários. O fato é que o sistema aperfeiçoado pelos arquitetos franceses do século XVIII foi bastante difundido em todos os países da Europa Meridional, de clima mais quente, daí sendo transplantados para suas respectivas colônias. No Norte da Europa, inclusive na Inglaterra, conhecem-se poucos exemplos de sua utilização. Em Portugal, também não alcançou uma difusão tão grande quanto na Espanha ou Itália. A forte influência exercida pela França nos séculos XVIII e XIV sobre os meios acadêmicos portugueses e italianos talvez explique o fato de se ter adotado nesses países o neologismo francês em detrimento de expressões locais mais antigas.

Para complicar um pouco mais essa história, a persienne dos franceses que, afinal de contas, ainda hoje é encontrada na maioria das moradias brasileiras, acabou sendo conhecida aqui como janela veneziana. Provavelmente porque sua difusão no Brasil dependeu menos de Portugal que das influências de construtores e marceneiros italianos. Ao mesmo tempo, aqui acabaram sendo designadas como persianas outros tipos de resguardo de janela, bem diferentes das tradicionais janelas à francesa.

Mas o que Veneza tem a ver com tudo isso? Desde a muito utilizava-se na cidade italiana, como proteção das janelas contra o sol, uma espécie de toldo constituído de fasquias (do latim fascia) de madeira ou cana ligadas por cordões ou tiras de tecido, que se enrolavam para cima junto à verga ou projetavam adiante do peitoril, à maneira dos toldos em tecido, conhecidos desde os romanos. Estes últimos aliás foram usados em diversos países, ainda hoje sendo bastante difundidos. A particularidade do toldo usado em Veneza, também conhecido como tenda alia veneziana, era ser constituído de lâminas de material rígido, guardando talvez alguma relação com o sistema persa. Afinal, Veneza mantinha estreitas relações com o Oriente, desde os tempos de Marco Polo.

Na língua inglesa, por outro lado, venetian blind (anteparo veneziana) refere-se a um tipo de resguardo interno das janelas fabricado hoje em dia com finas lâminas de alumínio de inclinação regulável, ligadas entre si e recolhidas até a parte superior do vão, por intermédio de cordões de nylon e roldanas. Curiosamente, no Brasil, esse mesmo sistema acabou sendo batizado de persiana.

O venetian blind, sistema desenvolvido pelos norte-americanos no início deste século e que, na sua versão brasileira mais recente, corresponde às moderníssimas Persianas Luxaflex Micro e Slim, é conhecido na França como store venetian (toldo veneziana), na Itália como veneziana e em Portugal como estore metálico. Apenas os povos de língua espanhola adotaram, como no Brasil, a designação de persiana.

Nessa verdadeira epopéia vivida pelas palavras persiana e veneziana ao longo dos tempos, resta ainda um episódio muito importante e ainda mais complicado do ponto de vista etimológico. Desde o final do século XIX, são conhecidos exemplos da aplicação de um novo tipo de resguardo externo de janelas que parece constituir um tipo de desenvolvimento da tenda alia veneziana distinto do venetian blind americano. Trata-se de uma espécie de esteira bastante robusta, constituída por réguas de madeira justa postas e articuladas entre si por meio de grampos metálicos, e podendo ser levantada ou abaixada através de um cadarço associado a um eixo encaixado por trás da verga. Em seu deslocamento vertical a esteira é guiada por trilhos de perfil metálico que atuam ao mesmo tempo como caixilho. Inicialmente restrita aos movimentos verticais contidos dentro da moldura das janelas, essas esteiras evoluem para um sistema de abertura mais complexo, combinando o deslocamento vertical com a projeção da base para o exterior, a exemplo dos toldos.

Muito difundidos na Franca a na Itália, sobretudo nas primeiras décadas deste século, aí ficaram conhecidas como store ou volet rouiant e persiana avvolgibile (toldo e persiana de enrolar), respectivamente.

Praticamente desconhecido nos países anglo-saxônicos e nórdicos, o sistema alcançou enorme difusão no Brasil sendo inicialmente chamado apenas de veneziana e mais tarde de persiana externa de enrolar.

As Venezianas de Enrolar na Arquitetura Européia.

As venezianas de enrolar aparecem na Europa, desde o final do século XIX, dentro do contexto da Revolução Industrial que enseja grandes avanços na mecânica e na metalurgia, com reflexos importantes sobre a construção dos edifícios. Na mesma época em que as tradicionais persianas de madeira começam a ser substituídas por similares em aço com dispositivo de abertura em sanfona, a indústria da construção na Europa consegue desenvolver esse sistema de esteiras-venezianas de enrolar que, para a época são expressões de uma grande sofisticação. Originalmente, construídas com lâminas de madeira ou de aço pintadas e dispondo de mecanismos simples de eixo, cadarço e roldana com mola embutida, continuaram sendo especificadas com essas características básicas por alguns dos maiores arquitetos deste século.

Um dos mais antigos e notáveis exemplos da utilização da veneziana de enrolar é encontrado em 1903 no famoso prédio de apartamentos da Rua Franklin, em Paris, de Auguste Perret, curiosamente um dos primeiros edifícios a serem construídos em concreto armado. A veneziana de enrolar colabora, nesse caso, com um dos propósitos básicos do projeto que é o de obter a máxima insolação possível através da fachada principal, assegurando ao mesmo tempo a condição de intimidade requerida por um programa residencial urbano. Outros exemplos pioneiros são a Casa Milá, em Barcelona, de Gaudi (1910), a Looshaus, em Viena, de Adolf Loos (1912) e o prédio de apartamentos da Rua Vavin, em Paris, de Henri Sauvage (1912).

A partir dos anos 20, a utilização da veneziana de enrolar, generaliza-se sobretudo nos países da Europa meridional (Itália, Franca, Espanha e Portugal), sendo aplicada em inúmeros projetos de Giuseppe Terragni, Mario Ridolfi, Marcelo Piacentini, Tony Garnier, Auguste Perret, Mallet-Stevens e muitos outros.

O DESENVOLVIMENTO DAS PERSIANAS DE ENROLAR NO BRASIL

Um dos primeiros e mais marcantes exemplos de utilização da veneziana de enrolar no Brasil só poderia ter vindo de um arquiteto com profundas ligações com a Europa. Trata-se da Casa Modernista da Rua ltápolís, de Gregori Warchavchik, de 1930. Warchavchik tinha experimentado a solução na Residência Max Graf, à Rua Melo Alves, de 1929. Na casa da Rua Santa Cruz, inaugurada em 1928, ele utilizara toldos de tecido, com um resultado próximo do das venezianas quando vistos de longe. O arquiteto gostava de fotografar suas casas, com as venezianas abertas e projetadas para o exterior. A posição inclinada dos painéis, ressaltada pela cor vermelho vivo em que eram pintadas suas lâminas de madeira, resultava um aspecto surpreendente e inovador para a época.

Outra obra pioneira que integra com originalidade o dispositivo da veneziana basculante de enrolar é o Edifício Esther, em São Paulo, de Alvaro Vital Brazil (1936).

Um dos arquitetos que mais freqüentemente se serviu das venezianas de enrolar em madeira foi Rino Levi, igualmente formado no ambiente arquitetônico italiano dos anos 20. Desde seus primeiros projetos, como o Edifício Columbus de 1932, a solução da veneziana de enrolar basculante é incorporada por sua versatilidade e adequação às exigências dos espaços de caráter mais íntimo. No projeto de 1948 de um prédio de apartamentos para a Companhia Seguradora Brasileira, em São Paulo, a plasticidade das elevações principais é toda determinada pela alternância da altura das venezianas, somada ao ritmo variável das projeções das mesmas para o exterior.

Nos anos 40 e 50, grande parte da arquitetura residencial corrente de boa qualidade construída no Brasil adota a solução da veneziana basculante de enrolar. Influenciados, entretanto, pelo estilo de Le Corbusier e pela moderna arquitetura norte-americana, grande parte dos expoentes do modernismo brasileiro abandonam esse dispositivo de proteção das janelas em prol dos brise-soleil e das venezianas em guilhotina ou de correr.

Nos anos 50, com a entrada em operação das primeiras fábricas de alumínio no Brasil, surgem novas possibilidades de desenvolvimento para a indústria da construção, particularmente no ramo de esquadrias e dispositivos quebra-sol. Mas ao passo que as indústrias americanas e européias diversificam os seus produtos, combinando componentes e aperfeiçoando mecanismos de acionamento, a indústria brasileira permanece tímida, possivelmente limitada por questões de custo e de escala de produção, como já se relatou com referência aos brise-soleil.

Somente a partir dos anos 80 surge no mercado uma nova geração de venezianas de enrolar, que recupera o atraso tecnológico em relação aos modelos hoje largamente difundidos nos países mais avançados.

Construídas com palhetas tubulares em alumínio com enchimento de poliuretano expandido e pintura a base de poliéster, as esteiras são leves, facilitando o seu acionamento, ao mesmo tempo em que proporcionam proteção térmica e acústica acentuada. O sistema de articulação das palhetas entre si permite dois estágios de fechamento: um que resulta vedação total da luz e do ar e outro que assegura uma iluminação e ventilação mínimas, através da perfuração das bordas de engaste.