Cemitério, Finados, etc.

Resolvi escrever sobre esse assunto especialmente pelas diferenças culturais existentes no que diz respeito ao tratamento aos falecidos. Essa diferença já começa quando se adentra um cemitério (Friedhof) na Alemanha. Este se assemelha mais à um grande bosque, completamente diferente do Brasil, onde o que vemos, na maioria das vezes, assemelha-se mais à uma "selva de pedras".

Nos cemitérios alemães, o único detalhe que torna possível saber que o que estamos vendo se trata de um túmulo é a lápide, uma placa em pedra nobre (especialmente granito) fincada verticalmente no solo, com inscrições talhadas. Estas, em geral, são o nome da pessoa, as datas de nascimento e falecimento e uma sentença em sua homenagem. 

Cada sepultura parece mais uma pequena floreira, sendo que muitos alemães, especialmente os idosos, vão em muitos casos até semanalmente cuidar desse "pequeno jardim". O que salta aos olhos é realmente essa grande "dedicação" aos falecidos.

Uma coisa que faz parar para refletir é a sensação que se tem ao visitar um cemitério alemão. Não temos um sentimento de "pesar" ou "condolência", mas um sentimento de "paz", de "relaxamento". A presença em grande quantidade dos pássaros, as árvores, a grande variedade de cores em cada "pequeno jardim", deixa-nos a sensação de que aqueles que se foram realmente estão em "eterno descanso". Muito interessante. 

O que mais me chamou a atenção foi a grande disparidade cultural quanto ao conceito de túmulos "ricos". Para um brasileiro, um túmulo mais nobre seria aquele que possui uma capela, ricamente adornado com pedras e esculturas. Para um alemão, um túmulo nobre é aquele que possui mais espaço para "jardim", com bancos - semelhantes aos bancos de praça - e pequenas "trilhas" em pedra para caminhar por ele.

Outro detalhe interessante é que existem na Alemanha três datas comemorativas para o "culto" dos falecidos, listadas na tabela que se segue.

Allerheiligen
"Dia de Todos os Santos"
  1o de Novembro
Allerseelen
"Dia de Todas as Almas" (Finados)
  2 de Novembro
Ewigkeitssonntag/Totensonntag
"Domingo da Eternidade"/"Domingo dos Finados"
  último domingo antes do 1o dia do Advento

Para o entendimento do significado de cada uma destas datas comemorativas, coloco abaixo o contexto histórico em que estas surgiram. Basicamente, o Allerheiligen e o Allerseelen são datas comemoradas pelos católicos e o Ewigkeitssontag ou Totensonntag é uma data comemorada pelos protestantes.

Datas comemorativas para os finados - sejam mártires, santos ou "pessoas comuns" - já existiam no antigo Cristianismo. Desde o século 9, estes eram relembrados numa data fixa: o "Dia de Todos os Santos" (Allerheiligen), no 1o dia de Novembro. Em 998, Odilo de Cluny instituiu o "Dia de Todas as Almas" (Allerseelen) ou, para nós brasileiros, "Finados". Celebrado no dia 2 de Novembro, os monges de Cluny disseminaram esta data comemorativa no século 11, celebrada em Roma pela primeira vez no século 14.

Ambos os dias relembram os finados, com ênfases diferentes. No Allerheiligen ("Dia de Todos os Santos"), como o próprio nome diz, todos os santos (mártires) são foco central. No ano de 835, o Allerheiligen foi introduzido pelo Papa Gregório IV com esse significado.

No Allerheiligen, os túmulos nos cemitérios são decorados pelos parentes próximos dos falecidos. Os católicos acendem velas, que representam a "luz da alma", que ainda inflama no dia seguinte, o Allerseelen ("Dia de Todas as Almas"). Desta forma, o Allerheiligen conduz ao Allerseelen.

Já no Allerseelen, é enfocada a assistência dos vivos aos mortos. Nesse contexto, o culto à "pobre alma" teria aqui resultados. Este culto era promovido pela opinião de alguns clérigos e do conselho Triente, que diziam que as almas dos finados, após passarem pelo tribunal divino, estariam num local de purificação (purgatório) antes de serem admitidos ao céu. Os vivos poderiam auxiliar os mortos através de doações à "pobre alma": missas, orações, sacrifícios e jejuns. Este "cuidado com as almas", através da doação da assistência dos vivos aos mortos, cuja salvação final seria alcançada através de "boas obras", concentra-se no Allerseelen.

Os Reformadores - ou seja, os protestantes - tiveram problemas com ambas as datas: com a admiração dos santos em especial e com o culto dos mortos em geral. Assim resultou que nem o Allerheiligen, nem o Allerseelen tiveram chances de fato de ocuparem o calendário santo reformulado.

Durante um longo período, regiões protestantes aplicaram a parábola de São Mateus 8,22: "Deixe que os mortos sepultem seus mortos..." -, tanto que qualquer risco de culto aos mortos era evitado. Uma parábola posterior similar à esta foi estabelecida pela ordem da igreja reformadora de Zurique, que ainda hoje proíbe a exposição de um caixão na igreja.

Mas desde o século 19, também em regiões protestantes, foram estabelecidos movimentos em direção completamente oposta. Assim, desenvolveu-se na Alemanha a tradição do Totensonntag, que é celebrado no último domingo do ano litúrgico, antes do início do novo ano litúrgico com o primeiro dia do Advento.

Esta data não foi escolhida ao acaso: indica por um lado o fechamento de um ciclo irreparável. Mas pelo fato de terminar com o primeiro dia do Advento, o novo começo estabelecido por Deus, demonstra a crença de que tudo não acaba com a morte.

O Totensonntag chegou - na maioria das vezes sob o nome Ewigkeitssonntag ("Domingo da Eternidade") - durante o século 20 também na Suíça reformada. Freqüentemente os nomes de todos os membros das comunidades, que morreram durante o ano que finda, são proclamados durante a missa. É recomendada também uma intercessão pelos mortos. Ao fim da missa, a comunidade se dirige ao cemitério. O costume de acender velas nos túmulos no Allerheiligen - data comemorativa católica - também foi introduzido nos cemitérios protestantes após a Reforma.

Assim, no Totensonntag, bem como no Allerheiligen, os alemães visitam os cemitérios e cumprem um espécie de "ritual". Eles levam algo semelhante à uma lamparina e, dentro desta, uma vela com uma envoltória de plástico na cor vermelha.

 

Ao lado, tem-se um detalhe destas velas. Sem dúvida alguma, um costume muito interessante e de grande valor cultural.