Enchente na Bavária é cerveja aguada
Sérgio Rodrigues, Jornal do Brasil
Imagens assombrosas como a de Praga com um certo ar veneziano podem ter desviado a
atenção da maioria dos telespectadores, mas alguns terão notado o erro: em sua reportagem sobre as
enchentes na Europa para o
Jornal Nacional de terça-feira passada, o correspondente Marcos Losekann disse que a
área mais atingida na Alemanha era
"a região da Bavária".
Referia-se à Baviera, claro, como se chama em português a região alemã cuja capital é Munique.
Talvez seja um erro menor, um detalhe bobo, mas é significativo. O problema da tradução para o
português - ou da ausência de tradução - de topônimos em língua estrangeira é um vespeiro antigo que
a globalização tornou ainda mais infernal. Não custa dar umas cutucadas nele.
Embora o tema seja polêmico, "Bavária" me parece indefensável. Nesse caso não adianta argumentar,
como fazem os que tacham de ultrapassada a tradução de topônimos, que na era da comunicação global
instantânea é mais prático e elucidativo respeitar - a não ser que o alfabeto não o permita - a
língua original. Se fôssemos seguir tal regra, teríamos que chamar a região alemã de
Bayern, como fazem os alemães. De onde vem então essa ''Bavária''?
Do inglês "Bavaria", óbvio. Com escala na geografia anglófona dos marqueteiros da cervejaria
Antarctica, cujo produto homônimo parece ter ajudado a popularizar entre nós a forma
"Bavária". Inútil procurar lógica lingüística nessa triangulação Alemanha-Estados
Unidos-Brasil. O sentido é o da dependência cultural mesmo, como afirma o jornalista Marcos de
Castro em seu livro
A imprensa e o caos na ortografia: "O nome da região alemã é, foi e sempre será
Baviera, por mais que o tosco portinglês dos nossos publicitários o
ignore".
Marcos de Castro está certo, embora eu tenha dúvidas sobre o "sempre será". É freqüente
que o uso, mesmo contrariando o espírito da língua, se imponha à força de repetição. No referido
livro, depois de estraçalhar o anglicismo
"Bavária", o autor volta sua artilharia contra Taiwan. Em defesa da forma vernacular
Formosa, diz que Taiwan semeia a confusão porque ninguém tem idéia de onde fica isso. Será? Depois
que quinquilharias made in Taiwan inundaram nossos camelôs e lojas de R$ 1,99, não creio. É mais
provável que pouca gente saiba onde fica Formosa. Além disso, numa busca na internet, o nome
"Taiwan" será mais produtivo. Deve ser por isso que nossos principais dicionários já
registram o vocábulo
"taiwanês".
Problemas de uma língua periférica cada vez mais exposta ao bombardeio da informação globalizada.
Nada disso tem solução simples. Defensor das regras ortográficas clássicas, Marcos de Castro chega
ao extremo pouco razoável de condenar nomes próprios como Ayrton Senna - que para ele, não importa o
que diga a certidão de nascimento, deve-se grafar
"Aírton Sena"! Não sejamos tão radicais, mas entre o puritanismo lingüístico e uma
"enchente na Bavária" rola muita água.
Jornal do Brasil - RJ - 18/08/02 - caderno B - Língua Viva - p. B-4 -
Sérgio Rodrigues.
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